“Nova lei de licitações”: reflexões sobre atribuir ao controlador a missão de assessorar o gestor

Esse atribulado fim de 2020, um ano realmente atípico em escala global, traz, em 10/12/2020, junto com a montagem da tradicional árvore de natal, a aprovação pelo Senado Federal da redação final do Projeto de Lei nº 1.292-E, de 1995 do Senado Federal (PLS nº 163/95 na Casa de origem), uma reforma que traz um novo estatuto para licitações e contratos no país, em substituição a já mais que conhecida Lei nº 8.666, de 1993, que sobreviveu a 27 anos de críticas. 

 

Apesar dos significativos avanços, a flexibilização nos parâmetros de controle das contratações pode ser percebida a partir de uma leitura dos artigos 168 a 173 do texto final aprovado, que será encaminhado à sanção presidencial, merecendo ênfase um ponto específico, motivador dessas linhas, por passar a falsa impressão de ser um avanço, mas que poderia ter o potencial de gerar retrocessos no desiderato de licitações e contratos mais aderentes e efetivos, caso não tivesse sido rejeitado pelo Senado Federal (Complementação de Voto ao Parecer n. 181, de 2020 – PLEN/SF).   

 

Inicialmente, imagine que no contexto de um processo de trabalho de efeitos concretos qualquer, sob sua responsabilidade, você pudesse, atento leitor, formular consulta sobre as decisões que você fosse adotar no âmbito da sua esfera de atribuição, para aquele que, posteriormente, tivesse o dever de fiscalizar esse processo. Haveria grandes incentivos para assim o fazer, dado que essa atuação supostamente evitaria erros, retrabalhos e o blindaria da responsabilização, compartilhada com essa instância. À primeira vista, esta abordagem poderia aparentar uma atitude racional e indutora de efetividade desse processo.  

 

Em linhas gerais é a possibilidade que se apresentava no do art. 169, que trazia a redação a seguir transcrita:  

 

Art. 169 Para fins de controle preventivo, os órgãos e entidades poderão, na forma de regulamento, formular consulta aos órgãos de controle interno ou externo, com solicitação de posicionamento sobre a aplicação desta Lei em processo de licitação ou em contrato específico. 

 

Parágrafo único. A consulta a que se refere o caput deste artigo será respondida em até 1 (um) mês, admitida a prorrogação justificada por igual período, estará circunscrita ao objeto submetido a exame, não constituirá prejulgamento de caso concreto e não vinculará a decisão a ser adotada pelo consulente.” 

 

Apesar de uma visão minimalista fazer parecer que essa solução seria razoável e resolvedora de todos os problemas na execução de licitações e contratos, essa não é uma visão nova, e já foi a tônica em uma sociedade menos complexa, na qual se necessitava passar as licitações para a avaliação prévia de cortes de contas, para aferição “a priori” da regularidade, previsão do Inciso XIV do art. 42 da Lei nº 830, de 23 de setembro de 1949. Um paradigma que durou até 1967. Ter a faculdade irresistível de consultar o órgão de controle no decorrer dos atos concretos segue a mesma linha de pensamento, num formato que me muito se assemelha ao “visto prévio”, modelo adotado em Portugal, e que esbarra nas recorrentes críticas relacionadas à confusão entre controle prévio e preventivo, e ainda, uma visão burocratizante, como já apontado no Plano Diretor da Reforma do Estado de 1995, um documento nitidamente reformista.   

 

Vários argumentos poderiam ser contrapostos a essa inovação do passado: Que contraria as boas práticas de órgãos de controle adotadas internacionalmente, que a assessoria jurídica existente nos órgãos e entidades já têm essa faculdade de esclarecimento de dúvidas do gestor, e, ainda, que o fato de consultar o órgão de controle tem pouca relação, na linha das soluções, com os problemas habituais na gestão de licitações e contratos, mormente nas chamadas operações especiais, que permeiam os noticiários. Argumentos plausíveis, mas o presente texto vai explorar um outro aspecto para se perceber, de forma consequencialista, os possíveis problemas que poderiam advir da aplicação desse dispositivo na Administração Pública do Século XXI. 

 

Está se falando de uma regra que, na prática, permite a solicitação, por parte do gestor, de parecer opinativo aos chamados órgãos de controle interno e externo, a qualquer tempo, ao longo de todo o processo de gestão da licitação e da contratação, o que pode, inclusive, durar mais de cinco anos. Esse parecer versaria sobre a pertinência de qualquer ponto de aplicação concreta de uma lei de 191 artigos, bem como de suas decorrências regulamentares, jurisprudenciais e doutrinárias, e, ainda, com um exíguo prazo de resposta máximo de sessenta dias corridos.  

 

Mas, não é só. Importante registrar que, no âmbito dos Tribunais de Contas, o processo de consulta já existe regulamentado, e  tem natureza objetiva, não sendo permitida a valoração de fatos ou evidências, cingindo a discussão à aplicação de normas, cuja produção de efeitos das respostas vai além do órgão a que se encontra vinculada a autoridade consulente, parametrizando, assim, a atuação das demais unidades jurisdicionadas pelo Tribunal1.  

 

Não se pode desprezar que diante de tão complexo arcabouço normativo e procedimental, em tempos de uma percepção da corrupção como um problema social relevante, a atuação natural do gestor será consultar de maneira intensiva, sem ônus, o seu fiscalizador, para ter o sono dos justos, como uma criança insegura que pede a benção paterna a cada passo que lhe suscite medo de ser sancionado. Ocorre que a inserção do órgão de controle na linha processual de licitações e contratos apresenta três problemas de grande impacto no contexto prático, que cabem ser destacados na presente argumentação.  

 

O primeiro problema é que a resposta às consultas, apesar de a redação originária do texto dispor que não constituiria prejulgamento de caso concreto, trazia, de forma expressa, que a consulta poderia versar sobre posicionamento em contrato específico, mas que não vincularia o consulente, numa clara demonstração de que os órgãos de controle passariam a figurar na condição de assessores da gestão, tão somente, o que não guarda lógica funcional e jurídica com a razão de existir dos órgãos que integram o Sistema Constitucional de Controle da Administração Pública, cuja regularidade de funcionamento é pautada pelo respeito ao princípio da segregação de funções e separação de poderes, conceitos todos com sede constitucional. 

 

Desprezar o fundamento pelo qual o controle se pauta, para além de comprometer o êxito dos planejamentos anuais de fiscalização, alicerçados em critérios de relevância, risco e materialidade, presta-se a fomentar as críticas relacionadas ao ativismo de contas, abrindo espaço para que o controlador se substitua ao gestor, na medida em que transfere para a terceira linha de defesa um papel que a ela não cabe, pelo menos em ordem de prioridade, exacerbando o papel ex-ante do controle, uma disfunção nas discussões modernas da gestão pública2.  

 

O segundo problema é que esse processo terminaria por ferir a discricionariedade regrada do gestor, que, na boa prática da gestão pública moderna, deve ter autonomia para decidir e produzir resultados, sendo responsável e responsabilizado na linha da accountability. Com uma muleta institucional dessa natureza, o gestor teria o incentivo de compartilhar os processos decisórios da gestão com os órgãos de controle, em uma ampliada cogestão que poderia ter até um potencial de minorar riscos de responsabilização, mas que teria pouco potencial de inibir malfeitos, e seus desastrosos efeitos para as políticas públicas.  

 

Por fim, esse processo poderia gerar um gargalo nos órgãos de controle, açodados por um sem número de consultas sobre questões maiores e menores, de contratações cotidianas e relevantes, o que comprometeria a capacidade de fiscalização e afetaria o custo de oportunidade desses órgãos, que, com isso, teriam que deslocar sua força de trabalho  de caráter avaliativo, e, ainda, prejudicando, com isso, a atuação desses em outros relevantes temas, como a regulação de serviços públicos, o pagamento da folha de pessoal, gestão do patrimônio, descentralização aos municípios,  entre outros, dado que a administração pública e seus problemas não se resumem a licitações e contratos.  

 

Para se ter uma ideia, segundo o Portal da Transparência, apenas no governo federal, tendo como base o ano de 2019, foram realizadas 145.966 contratações que tiveram como base dispensas, inexigibilidades ou licitações. Basta um exercício mental para se ver o que isso representa em termos de mobilização de equipes, processos, análises e relatórios, com grandes custos de transação contrapostos a benefícios questionáveis em relação a impedir desvios, dado que esses não serão detectados a partir de consultas do gestor, mas sim pela ação sistemática e independente dos órgãos de controle. 

 

Assim, para que pudesse ser materializada a intenção do legislador de pavimentar terreno para uma atuação estatal colaborativa indutora de efetividade de políticas públicas, por meio de um controle dialógico com vistas a minimização de erros, o art. 169, que foi rejeitado, não deveria ter trazido, de forma expressa, que as respostas às consultas não vinculam a tomada de decisão do consulente, dado que conteúdo normativo dessa natureza teria como efeito concreto isentar o gestor de eventuais efeitos decorrentes da responsabilização pelos órgãos de controle, quando identificadas irregularidades relacionadas à má gestão, à corrupção e à ineficiência administrativa, sem benefícios percebidos com isso para um controle menos burocrático e engessador.  

 

 

Ismar Viana é Mestre em Direito, Auditor de Controle Externo. Membro do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro. Vice-presidente da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil e autor do livro “Fundamentos do Processo de Controle Externo”.  

 

Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e autor do livro “Vale quanto pesa: um estudo sobre os impactos do controle na gestão “ (2020).