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Integridade e o mito dos heróis: quem tem a força?
O desenho infantil com o personagem He-Man tornou célebre a frase “Pelos poderes de Grayskull! Eu tenho a força!”. A trama trata das aventuras do Príncipe Adam, filho dos governantes de Eternia, uma espécie de planeta mágico. Quando Adam levanta a espada do poder e grita a tal frase, se reveste de poderes secretos e se transforma em He-Man, o homem mais poderoso do universo. Ele usa seus poderes contra as forças do mal do vilão Esqueleto que, no limite, ambiciona governar o universo inteiro.
O mito do herói, aqui exemplificado com a personagem do He-Man, se repete de forma infinitesimal para quase todo o panteão de heróis das histórias de fantasia. Há sempre uma pessoa comum, submetida a um evento:
– acidental, ano caso do homem aranha, picado por um inseto radioativo;
– aleatório, no caso do superman, que ganha seus poderes por sua nave de fuga de Kripton cair na Terra; fosse noutro planeta, talvez ele seguisse a mediocridade de uma vida comum;
– hereditário, no caso do He-Man, já que Adam tem por direito a posse e os poderes da tal espada.
Nas estórias de fantasia, os heróis fazem em regra geral muito rapidamente a transição da mediocridade para a excelência. Uma vez travestidos em suas versões “excelentes”, os heróis salvam o dia, a cidade, o mundo. Em regra geral, suas versões “comuns” são mal resolvidas em suas vidas pessoais, pelos efeitos adversos de sua dedicação à causa heroica de salvar o que quer que seja. Com raras exceções, as tais “versões comuns” dos heróis dos quadrinhos são pouco inspiradoras ou edificantes. Vide o caso de Bruce Wayne, versão “comum” do Batman, que é propositadamente uma personagem quase amoral e pouco sensível às questões sociais e urbanas da gótica e violenta Gotham City.
Essas personagens mobilizam mentes e corações pois representam, no imaginário coletivo, essa possibilidade de que, diante da falência e frustrante atuação das pessoas comuns, um herói que salva o dia merece ser incensado e enaltecido. O tour de force dos heróis arrebata as pessoas. Mas será que a narrativa heróica é eficaz diante da complexidade do serviço público e de suas organizações? E mais, será razoável desenvolver e fomentar a ética e a integridade da Administração Pública a partir dos heroísmos?
O heroísmo é distintivo, separa essa pessoa comum do meio da multidão, traveste-a com uma identidade normalmente irretocável e a coloca para salvar o dia. Mas quem disse que as organizações públicas carecem dessa salvação? A salvação, no contexto religioso, refere-se a redenção, à remissão de culpas por um terceiro, um herói, portanto. Nesse espaço de reflexão (a fé religiosa), é fundamental a persona do herói que inspira, mobiliza e salva as pessoas numa dimensão transcendental (como é o caso da figura de Jesus para os cristãos).
Mas precisamos de heróis nas organizações públicas? E mais, precisamos de heróis da integridade no serviço público? Há um risco em depositar nos “heróis” o fardo de inspirar a integridade pública. Na falta desses heróis, há uma tendência de as organizações públicas mergulharem numa espiral distópica e niilista, em que a integridade parecerá atributo vinculado exclusivamente à imagem dos heróis.
A integridade, como princípio e como valor das organizações públicas, não deveria depender da mitologia dos heróis. Integridade é coisa de gente comum, sem poderes especiais ou espadas mágicas. É construção diária, resultante da postura crítica de cada servidor e gestor público, com base nas evidências coletadas no ordinário do dia a dia. Claro que as pessoas são mobilizadas pelos exemplos. Mas os exemplos que mais eficazmente instigam o comportamento ético e a integridade pública são os exemplos dos meus iguais.
Claro que os exemplos de integridade de Santa Dulce dos Pobres ou de Mahatma Gandhi são inspiradores. Mas as evidências de integridade de meus colegas de baia e de meu chefe imediato são mobilizadores. O comportamento dos meus iguais me mobiliza, me conecta com a prática concreta da integridade. Os heroísmos distantes seguem me inspirando, até que minhas emoções sejam capturadas por outras personagens mais carismáticas, de uma outra história (real ou em quadrinhos).
No setor público talvez não precisemos de heróis da integridade que nos salvem, mas sim de mobilização amalgamada pelos valores e princípios compartilhados por gente comum.
Autor:
Francisco Bessa
Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União