10 anos de acesso à informação no Brasil

Comemoramos no dia 16 de maio de 2022 os dez anos de vigência da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011), que representa o grande marco do conjunto de iniciativas adotadas no âmbito governamental, como portais, sistemas de solicitação informação, rankings de transparência, debates públicos e acadêmicos, entre outras, que construíram e vêm consolidando a institucionalidade da transparência no Brasil.

Ao longo da sua trajetória, a transparência ganhou protagonismo e ao mesmo tempo em que foi se consolidando como norma de governança, também sofreu alterações por conta de outras iniciativas, como o movimento de governo aberto (Open Government Partnership), da própria transformação digital (com big data, inteligência artificial, apenas para citar duas) e mais recentemente com a instituição de novas legislações, sobretudo as ações de promoção da governança (Decreto nº 9.203/2017) e a  Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018).

A transparência, enquanto corolário do direito ao acesso à informação, mais do que uma exigência normativa, é uma ferramenta de fomento e qualificação do chamado controle social, da participação cidadã no acompanhamento da gestão pública, cobrando eficiência e integridade dos agentes públicos, e propiciando que a qualidade da informação sobre o setor público, em especial na imprensa, atinja a níveis nunca conhecidos.

Essa década foi contextualizada, de forma concomitante, por mais uma fase do fenômeno da revolução das comunicações, com a maior popularização de aparelhos móveis celulares e as redes sociais. Á medida que favoreceu uma cultura de transparência, fortaleceu-se também a accountability nas relações públicas e privadas. Um mundo novo, na materialização da “aldeia global” de  Marshall Mcluhan, no qual apesar de ter uma profusão de informações circulando, os efeitos desta nas relações dos governos com as sociedades nem sempre se faz de modo homogêneo.

A geração, disseminação e o acesso à informação têm se dado de forma cada vez mais horizontalizada e muitas vezes conflitiva, com um contexto de redes sociais nas quais cada cidadão é consumidor e produtor de conteúdo. As versões e distorções de informações consequentes desse processo de horizontalização podem se tornar um problema nas relações, públicas e privadas.

Apresenta-se, assim, um desafio um tanto desconsiderado nos debates para a promoção da transparência. Um cenário que pode confundir os cidadãos na promoção do controle social, tanto por dificuldades de se estabelecer diagnósticos, quanto pelo fato das informações disponibilizadas poderem sofrer múltiplas versões e associações em um contexto no qual, contraditoriamente, muita informação pode gerar desinformação.

A sobrecarga de informações e sua disponibilização fortemente enviesada pode cegar ao invés de informar. Um efeito da cultura do acesso à informação que, combinado com o atual ambiente das redes sociais, potencializam o culto ao espetáculo e com ele se reforçam. Um clima de consumo desenfreado de novas informações chocantes, e que  faz com que as pessoas fiquem entorpecidas e percam a noção da realidade e da necessidade de reivindicar por direitos básicos.

Esse contexto atual, da chamada pós verdade, emerge de forma concomitante com o ideário de acesso à informação, de forma que se tem muita informação sobre as organizações públicas e privadas circulando, mas resta a dúvida dos efeitos dessa na capacidade de modificar condutas e opiniões na convergência de políticas públicas e ganhos sociais efetivos. A promoção da transparência é o grande desafio democrático do Século XXI, mas não apenas pela resistência de agentes públicos, mas também por força de questões conjunturais, de uma nova forma de se fazer comunicação, que pode resultar em efeitos contraproducentes desse esforço.

Como qualificar a transparência da informação pública para que ela tenha importância social? A resposta a essa pergunta exige o entendimento que a informação é um bem que tem valor a ela associada, podendo ser um valor político, econômico, indo até um valor geopolítico. Nesse sentido, há uma constelação de atores que disputam jogos de força e de interesses em torno de sua disponibilização, onde uns querem mais acesso e outros querem menos acesso à informação, inclusive dentro das estruturas do próprio Estado.

E não podemos culpar a transparência pelos resultados muitas vezes complexos desses movimentos democráticos. A transparência é essencial para conquista crescente de direitos, mas ela não resolverá todos os problemas sociais isoladamente. Nela reside o potencial de adição de valor público, como condição necessária, mas não suficiente.

Devemos sim valorizá-la, pois essa cultura de transparência nesse momento histórico instrumentalizou o cidadão de uma forma essencial. Em que pese a lacuna de pesquisas sobre o impacto das ações de transparência na efetividade de políticas públicas, essa relação é intuitiva. Mas, é preciso olhar para além da questão do acesso à informação e seus cânones.

A Lei de Acesso à informação foi um sucesso, se incorporou a vida pública cotidiana, representando um avanço inconteste. Mas, a questão não é a Lei, e sim o contexto novo que ela vem a habitar desde a sua gênese. Prova disso foi o aumento da procura por informações de direitos sociais na pandemia, por meio do usufruto da Lei de Acesso à Informação no Brasil, indicando que o momento de crise se refletiu na busca desse instrumento de controle social. Mas, houve aprimoramento na resposta do Estado frente as questões emergentes?

Faz-se necessário  discutir esse caminho entre a disponibilização (emissor) e a interpretação (receptor), de modo que as políticas públicas precisam ser desenhadas a partir dessa compreensão, sobretudo, da importância da relação da transparência com os ideais democráticos, mas também com objetivos específicos almejados, em uma visão instrumental, no qual a transparência não é um fim em si mesmo.

Nesse sentido, a transparência ex ante prioriza a previsibilidade, o planejamento, enquanto a transparência ex post focaliza o monitoramento.  Não basta aos governos disponibilizar informações, mas fazer com que elas tenham sentido para o receptor, dentro do contexto de uma política pública que perpassa toda  essa relação. O foco são as relações cidadão com o Estado, e a transparência é uma ferramenta essencial, sem desconsiderar que essa relação está inserida em um tecido social.

Políticas públicas que prevejam e priorizem a transparência e as ferramentas de participação social em seus ciclos regulatórios cumprirão um importante papel de mitigar desinformação, seja por conta da comunicação social institucional, por conta de estratégias governamentais integradas, pela comunicação via organização civil organizada, com think tanks, faculdade de jornalismo e ainda, pela própria atuação da imprensa. É importante fortalecer estes diálogos públicos entre os diversos atores sociais para o alcance de resultados mais coerentes e efetivos.

Nesse particular, cumpre destacar que todos esses atores têm um papel central inevitável no processo democrático, na luta por direitos sociais, humanos e individuais. O desiderato de geração de informação relacionadas a ação governamental que adicione valor público e que seja confiável, é responsabilidade de todos os atores, inclusive dos governos, sendo necessário revisar instrumentos e modelos, para dar conta da velocidade ciclópica desses tempos de desinformação. Não basta disponibilizar dados pura e simplesmente. Ali se trata de um processo comunicacional contextualizado.

E para exercer esse papel social, os meios são muitos e os exemplos também. No Brasil e no mundo, há agentes responsáveis que buscam comunicar e informar por meio de concursos, campanhas, softwares que evidenciam distorções, cursos de formação de multiplicadores, cursos de produção jornalísticas com sensibilização para a leitura crítica das informações. São muitas as possibilidades de fortalecimento de ações educacionais e comunicativas que permitam um melhor trânsito nesse novo contexto das comunicações. Este é um caminho que a sociedade deve trilhar para fortalecer a transparência nos próximos dez anos.

Dez anos após a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação e dada a expansão contínua das redes e mídias, tanto em nossa vida cotidiana quanto no funcionamento das instituições e das políticas públicas, essa luta vitoriosa da transparência se vê nublada diante desse cenário descrito, no qual mais informação não resulta necessariamente na melhoria nas relações sociais ou políticas. Essa é a nova fase dessa luta!

A guisa de conclusão, nessa selva louca e desvairada do mundo da pós verdade, para além das responsabilidades dos governos, fica um chamamento à importância da imprensa, dos profissionais da comunicação, e de toda uma rede de verificadores e explicadores, de produtores de conteúdo, ou seja, um conjunto de atores que, pela forma como lida com informações disponibilizadas oficialmente, tem o condão de valer-se legitimamente do acesso à informação para propiciar a defesa do acesso à informação legítima.

 

AUTORES:

Daniel Matos Caldeira

Doutorando em Administração Pública (Universidade de Lisboa)

Flavia Lemos Sampaio Xavier

Mestre em Ciência Política (IUPERJ)

Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ)

Temístocles Murilo de Oliveira Júnior

Doutor em Políticas Públicas (PPED/IE/UFRJ)

 

*Publicado na Coluna Diálogos Públicos do UOL