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Será que vai chover?
As discussões relacionadas a promoção da integridade, no contexto de políticas anticorrupção, que se acentuaram mais nos últimos cinco anos, tem, na prática, um tom de atuação na linha do “soft control”, materializado na sensibilização, na capacitação e na mudança da cultura organizacional. O presente artigo, com título homônimo de uma antiga canção da banda Paralamas do sucesso, tenta entender se essa linha de ação é necessária e suficiente frente ao grande problema posto da corrupção. Um tema a ser discutido.
Assim, pululam eventos, palestras, cartilhas e um sem número de artefatos que visam atingir os gestores públicos e os empresários, na linha de que eles devem dizer “não” para a corrupção, de forma a ter como resultado uma gestão pública mais proba. Uma nuvem de ideias pautadas nos conceitos da ética e da integridade, e que anda com força no ambiente corporativo, público ou privado. As vezes, entendida como uma via hegemônica para dar conta da corrupção em toda a sua complexidade.
Mas, para o senso crítico, fica sempre a indagação: “Será que vai chover?”. Cabe o questionamento se essa nuvem de ideias conseguirá se precipitar sobre a gestão pública, realmente revertendo a ocorrência de atos corruptos, ou se é uma movimentação necessária, mas que talvez não seja suficiente para irrigar as organizações com integridade.
Seguindo a analogia proposta, o “timing” da chuva é determinante para o equilíbrio dos ciclos hidrológicos. Se a chuva cair de forma torrencial num curto espaço de tempo, os resultados podem ser trágicos. Por outro lado, a sua escassez prolongada impõe severos custos (como os que o país tem experimentado e que tendem a se agravar, com impactos graves sobre a Economia). Há que chover, no volume, intensidade e na distribuição espacial que garanta os melhores benefícios da água que molha a terra fértil e reabastece reservatórios.
No campo da integridade (no setor público, nas empresas ou ainda, no terceiro setor), é mais complicado medir a eficácia do acúmulo de nuvens da ética, dos valores e da conduta, e ainda, o seu reflexo na efetiva redução de quebras de integridade, que tornaria evidente a precipitação dessa chuva. Por isso, para a operacionalização dessa política de integridade, se pensou em Programas com o mesmo adjetivo, que contam, em regra geral, com mecanismos mais tangíveis, passíveis de detalhamento operacional. Esses elementos são verificáveis e auditáveis, sendo possível aferir se funcionam adequadamente ou não. Entre os elementos “concretos” da integridade, podem ser destacados:
– a transparência (ativa ou passiva), aferida pela conformidade na disponibilização de dados e informações relevantes para o controle social;
– a existência e funcionamento de canais de denúncias, que podem ser aferidos por sua segurança, sigilo e proteção para a apresentação de manifestações;
– a existência e operacionalização de um rito disciplinado de gestão de riscos, inclusive aqueles estritamente relacionados à quebra de integridade, e que possibilite a identificação e revisão das incertezas às quais está sujeita a organização e seu adequado tratamento e mitigação de efeitos.
– a execução dos ritos de apuração e remediação de desvios, com respeito ao contraditório e ampla defesa, e resultante aplicação de penalidades proporcionais ao potencial ofensivo dos desvios ou ilicitudes.
Os programas de integridade são instrumentos de materialização de valores organizacionais, a precipitação dessa chuva superestrutural, e essa interação entre valores/discursos e práticas/efeitos, é o nó górdio da discussão recente da integridade, de forma que a busca de coerência e da efetividade dessas iniciativas reside no conflito posto entre o alinhamento que se deseja na organização e o custo administrativo de se atingir razoavelmente a simetria de valores e de práticas.
De acordo com a Professora Juliana Porto (1) , da Universidade de Brasília-UNB, os valores organizacionais são representações cognitivas da necessidade das organizações em: 1) lidar com a relação indivíduo-organização, 2) mobilizar comportamentos apropriados para a organização e 3) estabelecer a relação entre a organização e o meio externo. Valores são percebidos na organização, nos seus discursos e artefatos, como reflexos da internalização destes pelos atores da organização, em uma dialética complexa entre o posto e falado em relação ao vivido e executado.
Como diz o chavão, “Integridade é fazer o certo, mesmo que ninguém esteja vendo”, uma visão um tanto utópica da internalização homogênea desses valores organizacionais, há de se considerar que esse processo de formação de uma cultura de integridade é uma construção, o que demanda esforços, ajustes e pactuações, diferente de uma visão “plug-and-play”, na qual após uma sensibilizadora palestra, sairiam todos convencidos e agindo da maneira mais ética possível. O triângulo da fraude de Cressey que o diga.
Desse modo, no mundo real, as organizações não “se comportam”. São as pessoas, inseridas em um contexto organizacional, que agem, reagem, expressam comportamentos e tomam decisões diariamente, a partir da influência “chuvosa” dessa cultura organizacional, que se revela nos “pequenos comportamentos” das pessoas que diariamente evaporam no ambiente organizacional e formam as nuvens de chuva. O pequeno comportamento é reflexo, não causa.
Por isso, pode ser uma visão idílica jogar toda essa conta da integridade apenas na cultura organizacional, dado que aqueles indivíduos tem uma historicidade, convivem em outros contextos sociais, tem motivações e demandas, e também contribuem, de forma bottom up, com a cultura organizacional, em uma mescla de forças, de instituições formais e informais que se combinam na cultura real, o que serve como base de ocorrências, inclusive quebras de integridade.
E esse tecido socio cultural da organização é limitado por mecanismos estruturais, por regras, ações gerenciais, que buscam pelo consenso e pela coerção, por incentivos e controles, estabelecer a governança daquela organização, na busca de atingir seus objetivos. Organizações são complexas e fazer acontecer valores é uma tarefa de igual natureza, de forma que a precipitação dessa nuvem de ideias pode exigir a parceria com mecanismos bem concretos.
Há a necessidade de se adotar estratégias de mobilização desse “ciclo hidrológico” virtuoso dos valores organizacionais, para que ele realmente tenha efeitos concretos, palpáveis, ainda que não necessariamente mensuráveis. Para além de um dia só de trovoadas, o que traz vida à semente é a chuva que beija o solo, fértil e promissor. Um trabalho, por vezes, de gerações.
O grande risco, inclusive para a continuidade de iniciativas de integridade, é a ilusão de que apenas mobilizar comportamentos com base em valores seja o suficiente, podendo se tornar essa linha de ação uma espécie de “cortina de fumaça”, para dar aparência de integridade às organizações, que na prática estão carcomidas pelo pragmatismo da sua própria sobrevivência. Certamente, esse desafio da gestão pública não é tão simples assim.
A mobilização de comportamentos por meio do Soft control, requer paciência pedagógica, disciplina para a reflexão permanente e esforço continuado de sensibilização e engajamento. Se os valores são os critérios basilares que orientam (ou devem orientar) o comportamento dos indivíduos inseridos em uma organização, são lentes que devem ser utilizadas para examinar a realidade, possibilitar a adequada apreensão dos fatos, e sensibilizar os indivíduos (e as instâncias decisórias da organização) em cada situação específica, concreta e real.
Mas, isso tudo, para se tornar efetivo, precisa da combinação de alguns controles mais duros, de ações mais sistemáticas, envolvendo a base e o topo da organização, em um constructo que mostrará a todos as vantagens concretas de pactos pela integridade, seja na relação entre si, seja na relação no contexto da organização, e consequentemente dos seus atores, com os ambientes externos e seus poderes regulatórios.
No longo prazo, serão os valores organizacionais, absorvidos na cultura organizacional, permeando os corações e mentes dos atores, que sustentarão e replicarão o comportamento ético esperado. A questão é se há tempo para esperar a chuva cair. Talvez seja possível, pela qualidade da estratégia de implantação dos Programas de Integridade, borrifar nuvens ainda em formação para dar-lhes estofo e apressar o ciclo.
Nesse sentido, talvez a gestão de riscos de integridade, que torna cada organização única pelo seu perfil, e que torna as ameaças questões concretas e valoradas, seja um bom caminho para fazer essa chuva se precipitar na medida mais adequada. Um bom programa de integridade, além de refletir os valores da organização, precisa da centralidade da gestão de riscos para dar concretude a esse processo de construção da integridade, mirando nas ameaças relevantes, fugindo de moinhos de vento.
A adequada identificação dos riscos à integridade é essencial para que a pedagogia dos valores organizacionais seja eficaz. A sensibilização ética genérica e imprecisa pode emular um discurso similar a “autoajuda”, de baixa eficácia. Por outro lado, a mobilização dos indivíduos no contexto de suas organizações, de forma “customizada” pelos riscos à integridade mais relevantes e pelos desafios próprios de cada organização, deverá resultar em um engajamento perene, concreto, duradouro, de uma integridade que suplanta a teoria se fazendo na prática.
(*) O presente artigo é derivado do painel “Integridade: a teoria na prática é outra”, conduzido pelos autores no I Congresso de auditoria interna e controle governamental, ocorrido de 24 a 26/08/2021, promovido pela Verbo Jurídico e com apoio do CONACI, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=PjZXDOyxqRM
(1) vide artigo “Valores organizacionais e civismo nas organizações”, disponível em https://www.scielo.br/j/rac/a/BF3kfG8d3jsNxyr5GZJvztp/?lang=pt#
Autores:
Francisco Eduardo de Holanda Bessa é Economista e Mestre em Controladoria pela Universidade Federal do Ceará. Auditor Federal de Finanças e Controle, foi Secretário Federal de Controle Interno.
Marcus Vinicius de Azevedo Braga é Doutor em Políticas Públicas (UFRJ), Auditor Federal de Finanças e Controle e autor do livro “Tudo sobre controle”, pela Editora Fórum.