Os tempos do controle nos novos tempos

Servindo-se de um artifício literário, tem-se que no diálogo dos personagens  “Gandalf” e “Frodo” nas cenas iniciais do primeiro filme da franquia ”O Senhor dos Anéis”(2001), uma adaptação de um clássico da literatura,  a emblemática frase: “(…) os magos sempre aparecem no momento certo”; pena que isso só aconteça na ficção. E a julgar pelo riso dos personagens, nem ali se acredita verdadeiramente no poder de tempestividade ideal dos magos. No mundo real, identificar o tempo exato para determinada intervenção é problema envolto de questões complexas. Este artigo se dirige à questão específica, qual seja a tempestividade do controle exercido sobre a Administração Pública.  

 

Os controladores – humanos que são – estão longe de serem tão prodigiosos (ou oniscientes) quanto os magos da Terra Média. Não à toa, o momento da atuação dos órgãos de controle da administração governamental é assunto na ordem do dia das discussões políticas e doutrinárias, inclusive para criticar as ações desenvolvidas por estes órgãos. Faz-se necessário uma análise ampliada dessa questão, ao largo dos duelos doutrinários que colocam em polos distintos controladores e gestores. 

 

Ao tempo em que alguns aplaudem os resultados obtidos com ações de controle baseadas no uso de inteligência artificial e análise preditiva para antever (e detectar) problemas em licitações, outros questionam a interferência dos controladores no mérito das decisões do gestor, agindo em um sentido punitivo antes mesmo do ato administrativo se materializar. Defensores de uma visão mais reformista valorizam um controle predominantemente a posteriori – com foco exclusivo nos resultados, de modo a preservar o espaço decisório dos gestores públicos e a evitar o engessamento da ação governamental; outros, apontam que a atuação meramente corretiva é ineficaz contra práticas corruptas, dadas as dificuldades em responsabilizar os envolvidos e recuperar os recursos eventualmente desviados ou desperdiçados, priorizando “burocráticas” verificações ex-ante, que podem fazer dos controladores verdadeiros cogestores. Desse caldeirão de visões, eis a questão instigante: existe um tempo correto para a atuação do controle? 

 

Essa questão não é recente nas tertúlias da Administração Pública. Em 1891, quando o Tribunal de Contas da União foi criado no Brasil, Rui Barbosa defendeu que julgar e punir não seria suficiente, porque a ação do controle, desta forma, resultaria muitas vezes inútil, omissa, tardia ou impotente [1]. Nessa linha, até 1967, os tribunais de contas (entes de controle externo) atuavam preventivamente, por força de premissa constitucional, fazendo o registro prévio de toda decisão administrativa que implicasse em gasto público, um processo impensável nos dias de hoje, com a complexidade e o volume de transações da Administração Pública no Século XXI.  

 

O sistema de controle interno, por sua vez, que nasceu em reação a esse arranjo tutelado, conferindo maior autonomia aos gestores, tem em sua gênese a atuação preventiva, conforme previsto na ainda vigente Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, que em seu Art. 77 assim dispôs: “A verificação da legalidade dos atos de execução orçamentária será prévia, concomitante e subsequente”.  

 

Duas décadas mais tarde, a nova ordem estabelecida pela Constituição de 1988 fortaleceu os órgãos de controle, internos e externos, mas não trouxe previsão expressa acerca da competência para o exercício da atuação preventiva. Com isso, ganhou força um movimento doutrinário no sentido de considerar arbitrário ou inconstitucional [2] o controle realizado antes da execução da despesa pública.  

 

Tal movimento foi reforçado pela implementação do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 1995, que prestigiou o exercício do controle a posteriori, justificado pela retirada de supostos entraves “burocráticos” provocados pela auditoria pública, alegando-se ineficiência administrativa na verificação anterior ou concomitante com a prática do ato de gestão. Uma visão de “controle por resultados”, e não de um “controle focado nos resultados”.  

 

Consolidou-se, então, uma forte corrente de entendimento no sentido de que controle bom é o controle posterior, mediante prestação de contas, e que o gestor tem autonomia (delegada) para o livre exercício de seu mister; caso ele falhe ou cometa algum deslize moral, será posteriormente punido e obrigado à ressarcir os prejuízos causados. Tal corrente se materializou no Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública Federal [3], que propunha, como regra, o controle posterior, resgatando as ideias reformistas; apesar de não ter prosperado, suas ideias continuam a ecoar, nos colocando distantes de uma pacificação doutrinária acerca do alcance da função controle e de seu tempo de execução.  

 

Mais recentemente, o cenário mudou, fortalecendo visões de controle prévio, influenciado, principalmente, por três fatores: i) a instituição da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/ 2013), deslocando o olhar do controle para a vertente preventiva dos programas de integridade e buscando a reparação de danos por meio de acordos de leniência; ii) os avanços trazidos, a partir de 2016, pela institucionalização sistemática da governança e da gestão de riscos no setor público; e iii) a intensificação no uso de inteligência artificial e de análise preditiva, possibilitando o uso de trilhas nas auditorias governamentais, instrumentalizando e fortalecendo uma ação preventiva do controle. Somam-se a isso os sucessivos escândalos de corrupção, que apontam para a insuficiência do controle até então exercido, predominantemente a posteriori. 

 

O ressurgimento do controle prévio, na esteira de um avanço tecnológico e de uma valorização da gestão de riscos, coincidiu, e de alguma forma tem relação de causalidade, com o robustecimento da função controle e dos controladores, acentuando a tensão entre o controle prévio  e o risco deste engessar a gestão, seja pela possibilidade de interferir no mérito administrativo, seja pelo potencial de antecipar delitos, no estilo do conceito de pré-crime oriundo da ficção científica, bem retratado no filme “Minority Report”(2002), para manter a analogia com o universo literário. 

 

E, segue-se a polêmica polarizada. De um lado a permissão para que erros e fraudes possam, eventualmente, acontecer, e, somente depois, corrigir, se for o caso; de outro, se antecipar para evitar que o erro se materialize, analisando a suficiência dos controles. Ambas abordagens comportam benefícios, efeitos colaterais e incorrem em custos de transação. Os controladores (e gestores) necessitam combinar essas estratégias, pois analisar antecipadamente contratos e licitações não é suficiente para mitigar riscos de ocorrência de problemas em sua execução, e apenas atuar após a execução do ato administrativo pode permitir a ocorrência de prejuízos relevantes e de difícil recuperação, frente as características de nosso sistema administrativo sancionador.  

 

As tensões entre os defensores e críticos da atuação preventiva do controle cresce paralelamente com a ascensão quase que hegemônica da questão da corrupção na pauta política, e com os consequentes movimentos em resposta a esta pauta. Uma tempestade perfeita. A tensão subjacente é o robustecimento e valorização social da função controle, que pode induzir ações dos agentes do controle no tempo que bem entender, indiferente aos potenciais danos colaterais, aliado a falta de confiança nos gestores públicos, fortalecendo a ideia de que quanto mais controle, melhor, sem uma discussão acerca da qualidade do controle, em uma visão sistêmica.   

 

Exemplos para ilustrar essas tensões não faltam. O controle prévio ambiental autorizativo para a realização de obras talvez seja um dos mais emblemáticos, pois suscita calorosos embates, notadamente nas audiências públicas de licenciamento ambiental e no Parlamento. Embates que passam ao largo da efetividade desta tempestividade frente aos prejuízos que se impõe a gestão. 

 

Para fins de ilustração de que a tempestividade é uma questão relevante, inclusive para a autonomia necessária dos órgãos de controle, toma-se de empréstimo um caso particular de fiscalização instituída pelo Tribunal de Contas de Portugal na gestão e alienação do patrimônio do Instituto de Segurança Social [4]. Este caso ganhou grande repercussão na mídia local em virtude de uma pretensa atuação contraditória, já que, em sede de controle prévio, o Tribunal apreciou um determinado contrato, sem lhe impor críticas, e, em auditoria posterior, imputou irregularidades ao mesmo.  

 

Como se vê, uma ação ex-ante não impede problemas ex-post, e ainda pode afetar a independência/autonomia do órgão de auditoria. Por outro lado, em especial nas licitações e contratos, cujas transações hoje em dia se dão predominantemente por meio eletrônico, bons resultados têm sido obtidos por sistemas de verificação, apontando indícios de irregularidades e impedindo certames já viciados na sua origem.  

 

Buscando contribuir para mediar essa tensão que envolve a tempestividade do controle, entende-se que as dimensões prévia e posterior devem se combinar, levando-se em consideração as características da política pública e de sua gestão, sopesando benefícios detectivos com os custos de transação impostos, com “o pulo do gato” da correlação entre as falhas identificadas e as fragilidades nos sistemas de controle, efetuando a retroalimentação do ciclo gerencial, tornando-o mais efetivo e menos oneroso. 

 

Terminando de forma exemplificativa, a verificação prévia em um programa de transferência direta, como, por exemplo, o auxílio emergencial, permite detectar inconsistências que impeçam prejuízos de difícil saneamento, mas também pode imobilizar a dinâmica do programa que, em caso de atraso, pode acarretar em relevantes dissabores aos beneficiários.  

 

O momento certo para os “magos” aparecerem é aquele que combine capacidade detectiva, impedindo erros continuados e de difícil reversão, com a capacidade avaliativa, que corrija e recupere, fortalecendo, assim, o processo de governança ao longo dos ciclos. Como mágica, a tensão se dissipa quando o foco da ação do controle é o atingimento de objetivos, a eficiência, e não exclusivamente a busca de culpados, pois não faz sentido falar em antecipação de punição, mas, sim, em evitar prejuízos. E os culpados? Serão responsabilizados no tempo certo, nos devidos processos.  

 

 

[1] BARBOSA, Rui. Exposição de Motivos de Rui Barbosa sobre a criação do TCU. Revista do Tribunal de Contas da União, v. 30, n. 82, p. 253-262, 1999. 

[2] BARROSO, Luis Roberto. Tribunal de Contas: algumas incompetências. RDA, v. 203, jan./mar. 1996, p. 139.[3] Disponível em <https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/article/view/931/678>. 

[3] BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Comissão de Juristas – Proposta de organização da Administração Pública e das Relações com Entes de Colaboração-Ciclos de Debates Direito e Gestão Pública. Brasília, 2009. 

[4] Vide https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/noticia-20200121.aspx  

 

 

Autores (já são autores do JOTA, pode buscar a qualificação padrão no site): 

Daniel Matos Caldeira 

Franklin Brasil Santos 

Marcus Vinicius de Azevedo Braga 

Sandro Zachariades Sabença 

 

Fonte:

Portal JOTA