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O controle do castelo alto
Débora Ceciliotti Barcelos (1)
Marcus Vinicius de Azevedo Braga (2)
Philip Kindred Dick (1928 –1982), notável escritor estadunidense do gênero ficção científica, popularizou-se mundialmente pela adaptação cinematográfica de suas obras, como em “Blade Runner”(1982), “O vingador do futuro” (1990) e “Minority Report” (2002), todos dirigidos por nomes de peso.
Em 1962, o autor publicou a distopia “The Man in the High Castle” (O homem do castelo alto) [1], que tratava de um futuro alternativo, no qual as forças do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) saiam vencedoras da segunda guerra mundial (1939-1945), convertendo-se em um grande sucesso literário, adaptado para a televisão recentemente, em 2015.
Nessa obra, que serve de inspiração para o presente texto, existia um personagem enigmático, Hawthorne Abendsen, autor de um livro difundido de forma clandestina chamado “The Grasshopper Lies Heavy” (O gafanhoto está pesado), uma referência bíblica. Esse autor supostamente vive em uma propriedade semelhante a uma fortaleza protegida, chamada de "Castelo alto", no interior dos Estados Unidos. Um livro dentro do livro, a narrativa do “Grasshopper” descreve um futuro alternativo (para a realidade do livro), no qual as forças do Eixo são derrotadas e os aliados são os grandes vencedores da Segunda Guerra.
Um clássico do criativo Dick, e que pode servir de base para uma metáfora interessante para o contexto da função controle governamental, e seus atores que instrumentalizam a accountability nas relações, em especial a função auditoria interna, por assumirem estes, por vezes, uma gramática conhecida no país, a do “insulamento burocrático” [2], fazendo-se encastelados, pautados pela sua interpretação da realidade, seus problemas e as possíveis soluções, sem o exercício da empatia, uma das características de sistemas colaborativos e integrados.
Certamente, a autonomia é um atributo essencial a todo órgão que tenha como missão a promoção da accountability horizontal [3]. Uma faculdade fundamental para órgãos técnicos e especializados, que tem poder de supervisão e sanção, como verdadeiros pilares do contexto democrático. Mas ela precisa, como qualquer prerrogativa, ser compensada por uma relação de accountability [4] entre as partes, e ainda, por um certo equilíbrio entre a alteridade e a empatia necessárias no que se refere aos problemas da realidade.
Não se pretende negar que os órgãos com funções relacionadas ao controle necessitem dessa alteridade, ou seja, de um afastamento necessário que lhes possibilite emitir com independência a sua opinião em relação a gestão e que tenham autonomia que lhes faculte escolher o escopo que tecnicamente forneça a visão mais ampla da gestão e de seus problemas, propondo assim as soluções necessárias.
Mas esse afastamento padece de um risco inerente do já citado insulamento, de uma visão do mundo a partir de uma ótica exclusiva, o que pode produzir informações que modifiquem a gestão em um sentido diverso da boa governança, podendo ser a função controle, nesse contexto, uma produtora de morosidade ou mesmo de quebra da credibilidade da relação da gestão das políticas públicas com os cidadãos.
Faz-se necessário explorar a fronteira de se investir na aproximação, no sentido de fomento a instâncias de coordenação e alinhamento, sem perder os benefícios da autonomia, mediando essa tensão, com um certo grau de consequencialismo, reduzindo esse grau de insulamento, permitindo se permear pelas demandas sociais, inspirado nas recentes alterações trazidas pela Lei n.º 13.655, de 25 de abril de 2018, que alterou parcialmente Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
No que se refere a função Auditoria interna, mais especificamente, este é um agente que conhece em grande parte a estrutura (os macroprocessos) de sua organização, suas fraquezas e forças, uma vez que possui um vasto arcabouço advindo das avaliações e consultorias realizadas no organização, podendo oportunizar e articular entre setores, servidores e a alta gestão para auxiliar nas operações da organização, através do capacitação contínua (novas habilidades) e da boa comunicação.
Não por outro motivo os cânones da auditoria interna dispostos no IPPF (Estrutura Internacional de Práticas Profissionais do Instituto de Auditores Internos) trazem que o auditor deve ser perspicaz, proativo e focado no futuro. Uma atuação que depende de uma certa porosidade em relação as demandas e peculiaridades da gestão, para que este não seja uma unidade a parte, um “ controle externo -interno” e sim uma linha de dentro que, com autonomia e objetividade, tem como meta que a organização atenda seus objetivos, e que as políticas públicas sejam entregues a contento.
Ainda nesse ponto, tem-se que a atividade, independente e objetiva, não exclui os atributos da proatividade e criatividade, para que as unidades auditadas passem a enxergar os auditores como parceiros, entendidos aqui como partes que agregam valor aos processos. As ações de auditoria são oportunidades de melhorias uma vez que serão levadas como diagnóstico à alta gestão a fim de obter resultados positivos.
A autonomia não significa ser alheio, frio. Objetividade não implica em deixar de considerar todas circunstâncias e a conjuntura da organização/órgão. O auditor precisa transcender ao mero “checklist” . A observância estrita da lei sem levar em consideração os impactos nas políticas públicas pode implicar em criar controles demasiados e que não contribuam com a eficiência e eficácia das operações, encastelados no mundo hermético de sua auditoria.
No controle governamental, é preciso sair do castelo, pois é na sociedade que reside o presente, com seus problemas e desafios, e não os futuros alternativos. O controle não pode redigir um livro dentro do livro da gestão real, fazendo dessa autonomia de caráter tecnocrata uma régua única e absoluta. A função controle existe para uma gestão mais efetiva e eficiente, e para isso, se utiliza de alguns atributos, entre eles a autonomia.
O insulamento burocrático por si só não é ruim [2] [5], sendo necessário, por permitir o equilíbrio em relação ao clientelismo, bem como o afastamento já citado. Mas precisa ser mediado por um ânimo de colaboração e de promoção da confiança, de diálogo e empatia, dentro de uma ideia que não existe controle sem povo ou sem gestão, ou ainda, de que a uma visão plural de pontos de vistas traz ganhos na realidade, complexa e multifacetada.
Referências:
[1] DICK, Philip K. O Homem do Castelo Alto. Trad.: Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2009.
[2] NUNES, Edson. A gramática política no Brasil: clientelismo e insulamento burocrático. -3. Ed. –Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. ; Brasília, DF: ENAP, 2003
[3] O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova, São Paulo nº 44, 1998.
[4] BRAGA, Marcus Vinicius de Azevedo. SABENÇA, Sandro Zachariades. Ben Parker e os dois dilemas da autonomia. Portal Congresso em foco. Brasília-DF. Disponível em: < https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/ben-parker-e-os-dois-dilemas-da-autonomia/>. Acesso em: 01.Fev.2020.
[5] EVANS, Peter. Autonomia e parceria. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
AUTORES :
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Auditora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES/MEC), Mestre em Processo Civil e advogada.
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Doutor em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED/UFRJ), Auditor Federal de Finanças e Controle e Auditor Interno do HUGG-UNIRIO (EBSERH/MEC).