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Integridade: precisamos de “gurus” nas organizações?
A agenda de integridade desembarcou de forma definitiva na agenda das organizações públicas e privadas. Em certa medida como efeito da ressaca dos casos ruidosos de corrupção que, sempre presentes em nossa história, se tornaram mais evidentes em período recente, a integridade entrou na pauta das empresas que se relacionam com o poder público por intermédio da Lei 12.846/2013. Em seu art 7º, essa peça legal prevê como atenuante na aplicação de sanções a empresas corruptas e corruptoras a “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.
Em sequência à referida Lei, o Decreto 8.420/2015 deu vida ao conceito de “programa de integridade” nas empresas privadas, ao indicar no art 41 que o “programa de integridade consiste…no conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira”.
Nessas normas, preocupou-se o legislador com a indicação de que as empresas teriam, na dosimetria das penas administrativas a elas aplicadas, a ponderação (e o efeito atenuante) decorrente da evidenciação da existência de mecanismos de “detecção e saneamento” de desvios e fraudes.
Após estabelecer os regramentos aplicáveis às empresas privadas com as quais se relaciona, a Administração Pública Federal deu as pistas de que também passaria a exigir dos próprios órgãos os mesmos compromissos com a agenda de integridade. Assim, o art 19 do Decreto 9.203/2017 previu que os órgãos e entidades da administração direta, autárquica e fundacional deveriam instituir programas de integridade, “com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção”. Destaca-se que enquanto o Decreto 8.420, ao tratar sobre os mecanismos de integridade no setor privado refere-se aos propósitos de “detectar e sanar desvios”, o Decreto 9.203 exige do setor público programas de integridade destinados também à prevenção das irregularidades.
Finalmente, por intermédio do recente Decreto 10.756/2021, foi instituído o Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal destinado a coordenar e articular as atividades e estabelecer padrões para as práticas e medidas de integridade na administração direta, autárquica e fundacional do Executivo Federal.
Os programas de integridade no setor público, ancorados em mecanismos-chave como a existência e funcionamento de canais de denúncia, mensuração e tratamento de riscos para a integridade e campanhas permanentes de conscientização quanto ao comportamento ético, passam a compor necessariamente o cenário e a pauta dos órgãos e entidades do Executivo Federal.
Trata-se de enorme desafio, pois a despeito de um conjunto mais tangível de medidas de integridade (como a estruturação de canais de denúncia e a existência de medidas efetivas de apuração e punição de desvios), os programas de integridade tratam em larga medida de um conjunto mais etéreo e subjetivo de questões, notadamente no que se refere aos aspectos relacionados à mobilização do comportamento ético das pessoas que fazem parte das organizações públicas.
O fomento à ética não é novidade recente no setor público. Os Decretos 1.171/1994 (código de ética profissional do servidor público) e 6.029/2007 (sistema de gestão da ética do Executivo Federal) são peças basilares no domínio da ética e da conduta. Os programas de integridade nesse sentido, não inovam. Mas oferecem, quem sabe, um importante embrulho para um tema que merece perene revisão: os requisitos do comportamento ético dos servidores públicos federais.
Tratamento de denúncias, riscos à integridade, apuração de irregularidades, desenvolvimento da conduta ética. O check-list da integridade não é trivial. Será oportuno conferir em que medida os Programas de Integridade serão o “embrulho” eficaz para esse conjunto de medidas, fluxos, processos e atividades destinadas a induzir, fomentar e preservar a integridade.
Vale ainda uma reflexão adicional sobre um tipo de personagem questionável nesse “mundo da integridade”. Por força do conjunto de formulações legais e normativas referidas, foram gradualmente surgindo e se destacando profissionais que atuam no campo da integridade. Essa atuação é extremamente bem-vinda e esses profissionais, seja no setor público ou nas empresas privadas, desenvolveram expertise e habilidade que certamente resultaram na estruturação de eficazes e efetivos programas de integridade.
Mas não será tênue a linha que separa um expert em integridade da figura de um “guru” do mesmo tema? Um especialista é naturalmente um estudioso que viveu a prática, elaborou roteiros, frameworks, padrões e métodos que podem (e devem) ser multiplicados. Um “guru” talvez até tenha sua trajetória similar à do especialista. Mas há uma clivagem nessa gênese. Enquanto o especialista aprende, erra, faz, erra de novo, faz melhor, erra mais um pouco e segue fazendo e errando, o “guru” é venerado com um status quase divino.
Um dos riscos à integridade no setor público ou nas empresas privadas será o de abandonarmos os programas de integridade aos “gurus”. Por mais bem-intencionados que sejam, os “gurus” não são questionados, sua quase-deidade não permite que suas ideias ou suas ações sejam discutidas. De acordo com o dicionário informal (https://www.dicionarioinformal.com.br/guru/), o “guru” na religião indiana é visto como um guia espiritual enquanto no ocidente o termo indica uma pessoa que tenha seguidores.
O setor público e as companhias privadas não precisam de “gurus da integridade”, que sejam incensados de forma quase-religiosa como detentores de uma sabedoria divina sobre a integridade. Na medida em que a agenda da integridade é fulanizada na persona dos gurus, perde-se a institucionalidade, a capacidade de aprender com os erros, de customizar as abordagens e de viabilizar a própria sustentabilidade dos programas de integridade.
Se dependemos de “gurus da integridade” nas organizações, está evidenciada a concretização de um dos mais importantes riscos para a integridade: se perdermos o guru de vista, se ele sair de cena ou for abduzido para um plano mais elevado, estaremos órfãos de integridade. Isso, é claro, até elegermos o próximo guru a quem devotaremos de forma intensa nossa inequívoca devoção…
Francisco Bessa
Bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Controladoria pela Universidade Federal do Ceará. Auditor Federal de Finanças e Controle da Controladoria-Geral da União – CGU e Chefe da Assessoria Especial de Controle Interno do Ministério da Economia. Atuou como Secretário Federal de Controle Interno da CGU e Assessor de Controle na Casa Civil e no MEC. É professor universitário na área de contabilidade gerencial, ética e mercado financeiro. É auditor certificado (Certified Government Auditing Professional – CGAP) pelo IIA. Formado pelo Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia – CAEPE da Escola Superior de Guerra, pelo Programa Minerva em Economia pela George Washington University e pelo Programa Executivo de Competências para Liderança pela Universidade de Indiana. Foi Superintendente Financeiro do Banco do Nordeste e Presidente da Empresa de Assistência Técnica Rural do Estado do Ceará (Ematerce).